sábado, 19 de abril de 2008

"eu já soube o cheiro do seu sapato; o cheiro do seu sapato molhado de chuva. chovia às vezes e eu não gostava, as pessoas saiam correndo na chuva, e riam; e eu não gostava porque não tomava chuva, porque gripava toda vez, ou griparia. eu penso que sei o cheiro do seu sapato molhado de chuva, e do barro molhado preso na sola; e eu que não gosto de chuva, sempre gostei de chuva, da chuva no seu sapato molhado; seu sapato de pano molhado de chuva, as suas meias enroladas do lado da mochila eram tão bonitas, joviais. você ria e chorava; o meu café me consolava enquanto chovia e as pessoas se encharcavam nas poças, felizes e nuas. chovia às vezes no meu guarda-chuva, o pano preto do guarda-chuva molhado. o cheiro do seu sapato sempre me comoveria; o cheiro do seu sapato molhado, ou o cheiro do barro e do mato, ou de um cachorro que por ventura passasse ao meu lado no ponto de ônibus em algum dia de chuva em que já não chovesse, em que já nada houvesse, em que eu já não lhe conhecesse e nem soubesse o cheiro do seu sapato molhado entranhado nas minhas narinas como um punhal nas minhas costas."
marco anhapoci